(Constructo)
Nota prévia: a expressão bilinguismo, aqui utilizada, exclui da abordagem a língua portuguesa que é hoje falada e compreendida por mais de 71% dos angolanos¹. A análise cinge-se a línguas locais de origem bantu.
Um inquérito feito por Tomé Grosso entre os povos do norte e centro do Kwanza-Sul, para aferir que língua falam, indica a existência de bilinguismo, havendo habitantes de zonas predominantemente ambundu que também falam Umbundu e, eventualmente, pequenas bolsas ovimbundu, em território de maioria ambundu, que também se comuniquem alternativamente em Kimbundu.
Do latim bilinguis, bilíngue é um adjectivo que se utiliza em referência a quem fala duas línguas. O termo bilinguismo, aplicado ao indivíduo, significa a capacidade de expressar-se em duas línguas. Numa comunidade, é a situação em que os falantes usam duas ou mais línguas alternadamente (WEINREICH, 1953).
Espreitando o censo de 2014, verificamos que a língua portuguesa é falada por mais de 71% (média), sendo que nas áreas rurais a percentagem média de falantes baixa para 49% (Censo 2014). Por outro lado, o Censo 2014 aponta as províncias de Luanda, Bengo, Kwanza-Sul, Kwanza-Norte e Malanje como a região de predominância ambundu, constituindo-se em 7,82% do total da população angolana (pg. 51), não afastando a existência, nesse espaço geográfico de Angola, de falantes de outros idiomas de origem bantu, com predominância aos ovimbundu.
No seu conjunto, os ovimbundu constituem 22,96% da população angolana, sendo o Umbundu o idioma mais falado e dos povos que, pelas razões que elencaremos abaixo, mais emigraram para outras regiões, mantendo, entretanto, quase imaculada a sua cultura.
- Por que haverá bilinguismo entre as populações do Kwanza-Sul?
No inquérito efectuado para a sua monografia (licenciatura) que visou esclarecer a designação do idioma dos povos do norte e centro do Kwanza-Sul, Tomé Grosso identificou respostas duplas quando questionava "eye hoji lyahi wondola?" (que língua você fala), num quarteto de escolha entre ngoya, Kimbundu do KS, Kibala e Mbalundu (Grosso 2019, pg. 69).
Seis respostas, dos 50 inquiridos, apontavam duplamente Kimbundu e Umbundu ou Kibala (variante de Kimbundu) e Umbundu, correspondendo a 12% dos respondentes, o que desperta a nossa atenção. No auge das monoculturas, início do sec. XX, os fazendeiros instalados no Kwanza-Sul, quer fossem portugueses ou alemães de origem judia, procuraram intensamente por mão-de-obra ovimbundu por, alegadamente, se mostrar mais apta ao trabalho manual e a viver acampada, o que não acontecia com os nativos locais, propensos à rebeldia e fuga, visto que, "na visão de Heimer (1980), o período colonial conjugou lógicas capitalistas e não capitalistas, conjugação através da qual se gerava o excedente da produção agrícola e se reproduzia uma mão-de-obra barata" (Quitari, 2010).
José Capela (1978), citado por Quitari, descreve a forma «compulsória» como os povos do sul de Angola foram introduzidos na economia monetária para o pagamentos de impostos, recorrendo à venda da força de trabalho e/ou da produção agrícola aos colonos. Quer nos acampamentos, quer nas aldeias a que se juntaram ou constituíram, depois da desintegração das fazendas, esses antigos trabalhadores braçais ovimbundu conservaram sua língua, seus ritos de iniciação e festas e demais marcas de sua cultura, transmitindo-as a seus filhos e netos.
As necessidades fisiológicas e de integração levaram-nos, por outro lado, a encetar processos integrativos, o que os levou a aprenderem o Kimbundu local. Tal processo levou a que, embora cada unidade linguística conservasse intacta a sua língua (Kimbundu para a maioria autóctone e Umbundu para as minorias emigrantes), se desenvolvesse um bilinguismo, na medida em que procuravam comunicar e compreender-se simultânea e indistintamente em cada uma das línguas. Outros processos integrativos e de fusão como os casamentos entre Ambundu e Ovimbundu, a frequência de catequeses, igrejas, escolas e instrução militar são também apontados como elementos que propiciaram o bilinguismo entre os ambundu e ovimbundu do Kwanza-Sul.
S.K., 48 anos, natural de Mbangu de Kuteka, Libolo, entrevistado a proposito do bilinguismo entre os Ambundu do Kwanza-Sul, afirma que aprendeu Umbundu nos momentos de recreio escolar, numa altura em que, enquanto neto de um antigo detentor da categoria de assimilado² era impedido de falar Kimbundu, ao passo que os seus coetâneos e colegas Ovimbundu glosavam Umbundu nos intervalos entre aulas e durante toda a vida quotidiana longe da escola único recinto em que o professor os obrigava a falar a Língua Veicular.
Katumbu K'Etinu, 75 anos, natural da margem libolense do rio Longa, afirma que sempre falou Kimbundu, porém, "por causa dos mbalundu da fazenda" e por, numa fase de sua vida, se ter juntado a um Ngangela que falava Umbundu aprendeu a perceber e falar Umbundu, tendo um filho que é meio Ambund e meio Ngangela/Ovimbundu. A anciã acrescenta que na última aldeia em que viveu (Pedra Escrita), que é um "ajuntamento de povos de várias origens", com destaque para os Ambundu e ouvimbundu que trabalhavam nas fazendas coloniais, "todos falam Kimbundu, Umbundu e Português", sendo a última a "língua da escola, do contacto com a administração e visitantes".
Semelhantes estórias foram ouvidas no Hebo (Ebo) e no Kisongo (Quissongo), contadas respectivamente por Sabalu Lumbu, 60 anos, e Kambambi Mulalu, 55 anos, que vivenciaram a passagem ao Estado, por força da Lei nº 37/6 de 3 de Março (nacionalizações e confiscos) de fazendas antes detidas por colonos, a desintegração dos acampamentos de trabalhadores de origem Ovimbundu, recrutados no centro de Angola, e sua integração nas aldeias locais, próximas das antigas fazendas. Tal contexto político, histórico e sociológico, narraram, fez com que a necessidade de comunicação permanente, interação e integração das minorias propiciasse, quando possível, o surgimento do bilinguismo entre os Ambundu do Kwanza-Sul (regiões em que existiram acampamentos de trabalhadores Ovimbundu em fazendas agrícolas).
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¹- Censo 2014
²- Os assimilados eram os indivíduos que conseguiram demonstrar à administração colonial portuguesa que tinham alcançado um nível de evolução social que lhes permitia transitar de indígena para a categoria superior dos que tinham interiorizado e viviam segundo os preceitos da civilização europeia (adaptado de Nuno Domingos, 2020)
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