Um conterrâneo da Kibala, recuando no tempo, narrou episódios da nossa infância que é transversal a uma geografia que envolve os municípios à volta do Libolo e Kibala e num tempo que, se calhar, morre em 2000, podendo prolongar-se em algumas aldeias recônditas. É o nosso feudalismo que pouco há de escrito, dada a fraca imersão na nossa etno-sociologia e etnografia.
Quando nos debruçamos a estudar a história
clássica e medieval de Roma e Grécia, recaímos, invariavelmente, em episódios
angolanos do Séc. XX, em nossas aldeias interiores.
É exemplo a mãe que "cata" piolhos ao
filho, aproveitando adormecê-lo, podendo usar duas fórmulas: cantando e
catando.
Vivi esse tempo. Algumas mães, no escuro da
noite, sem saber se o achado por seus dedos entre o cabelo alto e sujo é ser
vivo ou grão de areia, levavam-no ao dente e largavam depois, um rio de saliva.
Vivi ainda o tempo da bitacaia[2], pulga de javali ou porco
doméstico que adentrava os terminais de nossos dedos e calcanhares. A comichão,
lenta e incómoda, resultava em dor da ferida escancarada, depois de extraído o
animal hóspede oportunista com a ponta de um alfinete ou de um pau aguçado.
Mas o meu conterrâneo contou mais e recordou-me
o seguinte:
Noite sem luar na Kibala ou outra aldeia do
circuito ambundu kwanza-sulino. Nas terras mais a sul e ou norte o cenário
também pode ser idêntico.
O archote é lamparina na cozinha escura. A
kizaca, peixe de água doce ou carne de caça ferve na panela de barro. Há fumo
largado pela lenha que reclamam por mais dias de seca ao sol. Mas quando a
lenha seca rareia em tempo de chuva é a semi-seca que se leva à fogueira. No
escuro e fumegante da cozinha a mãe pede:
- Mwiha mwombya (alumia para a panela)!
Na atrapalhação, o rapaz tanto alumia como deixa
cair na panela a ponta do archote ardido, já em forma de cinza.
- Nzayá, matubá, matondoá![3] -Dispara a mãe impaciente,
complementando a emenda com um valente "coco" que mata uma dúzia de
piolhos e lêndeas na cabeça do infante.
- Kwolule (não grita). - Adverte, prevenindo
para que não se acabem, de uma só vez, os piolhos todos na cabeça com outros
cocoricos.
Terminada a confeção do "kondutu"[4], é a vez da panela do
funji/pirão. O cuidado é redobrado. Em fuba branca, a cinza preta do archote é
vinho tinto em toalha imaculada.
-
Mwiha kyambote. - Adverte a mãe.
E o infante, com um grito adiado ou reprimido da
primeira pancada, lágrimas do fumo nos olhos, comichão na cabeça dos piolhos
famintos de sangue, acende, de novo, o archote que aproxima delicadamente à
panela de barro para a qual o fogo chia.
- Mwiha!
-
Ñi mwiha a mama!
-
Mwiha kyambote.
Depois
o repasto: as meninas na cozinha ou fora dela, no terreiro da casa, com a mãe,
quando há luar. Os homens na sala ou no njangu. Rapazes juntos.
O
rapaz quando não vai à escola da vida, o njangu, volta a reclamar o carinho materno,
"lambicando" como cão que se deita sobre a cinza quente da fogueira
recente. Dobra-se à frente da mãe que "jijina"[5] lêndeas, piolhos ou grãos
de areia escondidos no cabelo a reclamar por uma tesoura.
Contando
anedotas, ou canções do seu tempo de menina, a mulher afugenta os males e a
infra vida que a pobreza impõe, adormecendo o infante para uma nova aurora e
lavoura.
Tal
como a geração do último quartel do Séc. XX, as nossas crianças continuarão a
ler a história clássica e o feudalismo greco-romano. Quanto às nossas vivências, que são recentes, restarão poucas crónicas!
Soberano Kanyanga
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