Num relato de Thomas and Desch-Obi, M and J (2008), in Fighting for Honor: The History of African Martial Art Traditions in the Atlantic World. University of South Carolina, os imbangala (subgrupo ambundu) são tidos como "uma sociedade completamente militarizada, baseada inteiramente em ritos de iniciação".
Até aqui, foi mera observação que não demanda conhecimento profundo da língua alheia. Prossegue o cronista que "...Para impedir que o parentesco tomasse o lugar da iniciação, todas as crianças nascidas numa aldeia eram assassinadas".
Não terá confundido a convocação para a iniciação dos rapazes, que começa pela circuncisão? Não terá confundido os gritos motivados pela dor da cirurgia (a sangue frio) e o correr do sangue, por morte? É que, se nos século XX, quando já íamos à escola de formato europeu, a circuncisão demorava um mínimo de três meses, estou a pensar que, sendo ela uma instituição, podia demorar muito mais tempo no séc. XVII.
Quanto à iniciação, quase que se contrariando, Thomas diz ainda que "Durante o treinamento, se usava um colar que só poderia ser retirado depois que o praticante matasse um homem durante uma batalha. Os imbangalas se cobriam com um unguento chamado maji a samba, o qual eles acreditavam lhes conferir imunidade nas batalhas, desde que o guerreiro seguisse um código de conduta chamado yijila."
Toda a aprendizagem demanda o conhecimento e cumprimento de normas (ijila) rígidas. Os imbangala não estariam longe de Esparta e de outras sociedades clássicas e medievais da Europa.
Porém, e a entornar o caldo que levou tempo e paciência a preparar, o cronista seiscentista remata que "...esse código (kijila) incluía infanticídio, antropofagia e absoluta ausência de covardia".¹
Se Thomas acerta na "absoluta ausência de cobardia", pois os imbangala eram e seus descendentes continuam sendo guerreiros destemidos e disciplinados, o homem, que nem sequer tempo suficiente teve para aprender e embrenhar-se na língua dos povos que descreve, fez traduções e compreendeu ao pé da letra algumas coisas que lhe chegaram ao ouvido pela forma metonímica e metafórica.
Infanticídio e antropofagia não fazem parte de nossos relatos orais, ainda fontes importantes para a compreensão e construção da história dos imbangala. Veja esse trecho:
- Kaxinda wahi (Kaxinda morreu).
- Ki kyamwande (que foi que o comeu/que foi que o levou à morte?)
Aqui, kwanda=comer tem o sentido de levar à morte/à inexistência. É sentido figurado ou expressão metafórica que compara a desaparição ou transformação pela via da morte ao que se passa com o alimento que, por via da deglutição, deixa de ser uma coisa e passa a ser outra.
Certa vez, ainda eu criança, ouvi minha mãe que saíra de Luanda a contar às suas parentes sobre os atributos da mulher que o irmão dele "amigara". E dizia: omukaji aMbetu, uwaba kalunga samba!
Literalmente, kalunga é morte. A expressão kalunga é usada metaforicamente com o valor de infinito. O que ela transmitiu é que a beleza da cunhada dela (tal como a morte) era infinita!
Certa vez, andando pelo Rocha Pinto, eu e o Kitembo ouvimos duas manas de origem kibalense conversando nos seguintes termos:
- Axinda wakivita?
- Ohi?
- Kandonika wahi.
- Wahi? Kumbi bê?
- Samana yapiti.
- Ki kyamunzipi?
- Ngostu!
Veja a tradução literal: - Kaxinda, ouviste (tomaste conhecimento)? - De quê? - Antonica morreu. - Quando? - O que a matou? (Podia ser: ki kyamwande=o que a comeu) - Gosto (prazer)!
Note bem a expressão "ngostu!" ou seja gosto/prazer.
Na verdade, o que a senhora transmitiu foi que "Antonica morreu de SIDA ou efeito da busca desmensurada de prazer sexual".
Para um desconhecedor da língua, jamais chegaria à percepção do que levou a cidadã à morte.
Cusse Ndala, 55 anos, natural de Kisongo, diz que "o Kimbundu (língua matriz dos imbangala) deve ser interpretado e não traduzido literalmente, como o fizeram alguns cronistas seiscentistas, dada a elevada carga metafórica" (e parabólica) de suas expressões inacessíveis a não nativos.
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¹-Adaptado de: Imbangalas – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org(08.04.2022)
2 comentários:
Acho que o Canhanga nos enganou a todos ao abordar o bilinguismo entre os libolenses no congresso de linguística, história e antropologia. O seu forte é outro e não ficarias a dever nenhum daqueles cientistas estrangeiros.
Grato, Artur Graça Cussendala, pela vênia!
Com kotas como você, não há como não reflectir sobre o que se escreveu sobre a nossa ancestralidade. Sabe, estudei (no Enmasino Superior) Didáctica de História e aprendi um pouco sobre confrontação das fontes e reapreciação do conteúdo.
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