I
A nível internacional, o governo de Caetano tinha sido derrubado pelos capitães de Abril e era Spínola quem mandava em Portugal. Internamente os Movimentos de Libertação Nacional afinavam estratégias e alfinetavam-se para proclamar a solo a independência, a faltar seis meses.
O Kuteka estava enlutado. Tinha partido Ñana Ñunji Kitinu, o rei.
Kilombo Ki'Etinu, também conhecida por Maria Canhanga, estava concebida, primeira gestação de sua nova relação com o filho do forasteiro Ñana Muryangu, depois de sucessivos abortos até se tornar viúva de Kafanda.
Nascia assim, no dia consagrado à África, Kajila k'Elombo ou Luciano, homónimo do irmão mais novo de António Fernando Ndambi, adquirindo, mais tarde, o apelido materno, Canhanga, por ter nascido no óbito daquele e ter sido registado já com o pai finado.
Luciano nasceu "acidentalmente" na aldeia de Mbangu yo'Teka (Mbango-de- Kuteka) a comunidade natal do rei Ñana Ñunji Kitino Mungongo (Canhanga) entronizado na capital da região, Mbaze yo'Teka. Corria o ano de 1974 (segundo dados compulsados).
Até aos 4 anos, viveu em Kitumbulu, encosta montanhosa que separa o Kuteka do Lussusso, onde o avô parterno cultivava café banana e outros agroprodutos.
No ano da Agricultura (1978 em que o pais conheceu seca severa), António entende abandonar o pai e construir a sua vida perto do asfalto e da escola para os filhos. Enceta a migração com o seu primo Xika Yangu que era, à data, soba da aldeia de Mbangu-Kuteka. É exactamente neste ano que falece o avô Ñana Muryangu.
Em 1979, ano da formação de quadros, Kajila é matriculado na iniciação (pré-kabunga de então), percorrendo a pé a distância que separa a antiga Fazenda Israel à aldeia de Kalombo (uns 5 km a multiplicar por dois).
O aumento do número de alunos na antiga fazenda Israel (rebaptizada Hoji-ya-Henda), onde também vivia o professor José Borracha, fez deslocar a escola de Kalombo para a antiga instalação pecuária da fazenda, no ano lectivo 1980/81. Foi neste ano em que viveu a sua primeira experiência de actividade na OPA, quando participou da recepção ao Comissário Provincial Armando Dembo que visitara a fazenda Tabango.
A segunda classe foi frequentada em sala construída entre as aldeolas de João Salomão e Azevedo Kambundu. Já a terceira, fê-la no antigo acampamento junto ao campo de aviação, sendo professor das duas classes Jorge Manuel Carlos (Kakonda).
Foi o período áureo de toda a aprendizagem social e cultural, com intensa actividade virada às práticas ancestrais como: pescas (isca, cesto e envenenamento), caça (manipulação e fabricação de diversos tipos de armadilhas), agricultura e fundição de ferro através de fole (com o mestre Xika Yangu).
Em 1982, António Ndambi viria a falecer em Luanda, numa altura em que Kajila k'Elombo frequentava a instituição social onzo-i-mema (circuncisão), apartando-se do convívio com os demais parentes e aldeões enquanto durou a iniciação masculina.
Os dois anos que se seguiram, 1983 e 1984, foram marcados pela presença da guerrilha (UNITA) com ataques a veículos, minagem de estradas, ataques e pilhagens de aldeias, raptos, etc. São memoráveis as inúmeras noites passadas nas matas e as caminhadas, em recuo, para Fuke, Katoto, Kandemba e o ataque à Munenga, em Fevereiro de 1984, e consequente refúgio temporário (entre 15 a 30 dias) na aldeia de Samba Karinje.
No aspecto religioso, a sua primeira experiência dá-se em finais de 1983 quando o primo e professor Jorge Carlos o convida a frequentar a Igreja Cheia da Palavra de Deus. Foram poucos meses, pois a guerra tudo interrompeu.
Deixaram de ser feitas a agricultura, a pesca e a caça permanentes. Apareceram os recuados da Kisala, Kisongo, Longolo e outras localidades e iniciou também o abandono da região adjacente à fazenda Israel, hoje aldeia de Pedra Escrita.
II
Kuteka, Israel, Kalombo e Limbe eram conglomerados sem energia eléctrica, onde o pirilampo, à noite, era alegria para os pequenos. Fuke e Munenga, com lâmpadas acesas e muitos carros que passavam ou pernoitavam no motel do alemão Ngana Mbundu eram, aos olhos de Kajila k'Elombo, já cidade, daquelas que via apenas nos rolos fílmicos.
Antes de ir a Luanda, conheceu Kalulu, aonde fora com a mãe em busca de guia de marcha obrigatória naqueles anos. Kalulu era enorme aos seus olhos. A capital do Libolo mostrava-se tímida e destruída pela Unita que a atacara em Setembro de 1983.
Dias depois, em Maio de 1984 chegava à capitalíssima. A viagem durou 3 dias e foram "descarregados" nas imediações do Jumbo onde se estendiam duas ruas largas e com postes de iluminação muito altos. Numa das paredes estava desenhado um belíssimo Scania "cabeça burra".
Maria com embrulho à cabeça, Emília às costas e dois outros puxando pelas mãos, ergueu os olhos, tirou as medidas e descobriu a estrada que os levaria em direcção ao Hospital "Sô" Paulo. Daí em diante era já Rangel, onde vivia o irmão Ferreira.
No Kaputu, Kajila k'Elombo encontrou que brincadeira dos miúdos espertos era levar os recém-chegados aos becos e abandoná-los para que se perdessem, provocando o "nanyi wangibongela kambonga kadyalaêêê"¹. Mas Kajila k'Elombo já sabia ler e decorava os nomes e os números das ruelas e ruas por onde passava, bem como as desembocaduras destas.
Em Setembro, as aulas iniciaram. Vontade de voltar à escola era enorme, mas cédula pessoal não tinha. Para não ficar só aí, um irmão² que ensinava a segunda classe na Escola Grande da Terra Nova colocou-o na sua turma (sala 18). Assim repetiu a segunda e a terceira que não tinha acabado no Libolo.
Nos anos da RPA, todo o petiz ingressava à escola e simultaneamente à OPA. As batas escolares haviam sido substituídas pelo uniforme azul-celeste da OPA. Assim, nos três anos passados na Escola Grande, Kajila foi sempre chefe de brigada (turma), sendo Chefe de Estrela o coordenador-geral, professor Ki-Ngibanza.
Numa altura em que todo o abastecimento de géneros alimentícios e outros bens passavam pelo enfrentamento de bichas, o rapaz amestrou-se nas matérias que encontrou e era o responsável pela feitura de compras nas "lojas do povo" e depósitos de pão, gás, talhos e peixarias, ao que a família era brindada com parte destes bens. Em terceira linha paralela, fazia venda de restos derretidos de sabão, descartados pela Induve, a que chamavam "sabão cocó", cuidando ainda de levar o milho e massambala (negócio da mãe) à moagem, o que lhe custava bulling da parte de outros infantes, assuntos que eram resolvidos a músculos, kafrikes e "basulas".
Em 1987, na quarta, foi sozinho ao Palácio tratar do sei B.I. Malgrado, perderia o recibo e a cédula, meses depois, impossibilitando-o de fazer o exame da quarta classe. Os tutores entenderam que o fizera de propósito para não estudar e transformar-se em bandido como acontecia com alguns garotos daquele tempo.
Para puni-lo e prevenir, transferiram-no, em 1987, para Kalulu onde, novamente, sem documentos, frequentou o 4° Semestre do ensino de adultos e o II nível terminado em Junho de 1990.
Em Dezembro de 1989, a vila de Kalulu fora novamente atacada e pilhada pela guerrilha, obrigando Kajila a caminhar até Mbangu-Kuteka, passando por Munenga e Pedra Escrita. Três meses depois, voltava a Kalulu e já não tinha nome nas novas turmas que se reconstituíram depois do ataque, nem no internato onde residia.
Sem reabastecimento e com ataques frequentes às viaturas procedentes do Sumbe e ou Luanda, a fome tomara conta do internato da Missão Católica. Os conhecimentos de corte e costura adquiridos entre 1987-88, quando viveu em casa do mestre Gonçalves Carlos, permitiram-lhe usar a máquina de costura da esposa do director Avelino Gangala, resultando em algumas esmifradas moedas e ou pratos de comida.
Terminado o ano lectivo, pediu transferência para a escola Ngola Mbandi, em Luanda, onde frequentaria, entre 1990 e 1992, o III nível.
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¹- Quem achou/acolhe um menino perdido?
²- Arnaldo Carlos é hoje Comissário-Geral da Polícia Nacional.
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III
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