Nkidyafuka: é o vocábulo bakongo que designa quem tem dívida há
muito por pagar ou impagável. Essa condição em que se encontrava o meu primo
Segunda João, a quem que ajudei a criar, levou-me a Mbanza Kongo, percurso de
mais de 450 Km por terra, em estrada ainda bem cuidada.
Entre colinas que escoam abundante água pluvial para
riachos e canais temporários, cresce o mosaico habitacional, destacando-se o
tijolo (cor) do adobe queimado e que confere resistência e longevidade aos
imóveis.
Para quem como eu não ia a Mbanza Kongo há dez ou mais
anos, a cidade cresceu em tamanho e qualidade de vida dos seus habitantes: há
mais casas e edifícios erguidos na vertical, há mais asfalto, largos e novos
monumentos e, acima de tudo, mais sorrisos nos rostos das pessoas, longe do que
um jornalista gozão tratou, em Abril de 2005, por "cidade de rua e
meia".
A receber quem chega de Luanda está um monumento que
representa o topónimo do antigo reino: um caçador (nkongo), munido de
kanyangulu, outros instrumentos menores de caça, um valente cão (também
necessário ao caçador) e acompanhado por uma senhora que leva os víveres e que,
com certeza, confecciona a jinginga servida ao jantar.
Mas estou ainda no Ambriz, norte do Bengo, a caminho
do Zaire, parado num posto de abastecimento de combustíveis e aproveito
prosear:
- Mana, boa tarde!
- Boa tarde mano. Quer "arguma" coisa para
consumir ou para levar?
- Para consumir. Um café, por favor. Pode ser com
açúcar, mas tem de estar quente e forte.
Enquanto a jovem ligava a máquina aproveito provocá-la:
- Mana, como se chama quem nasceu no Zaire?
A senhora faz passear a mente que navega nos
conhecimentos acumulados ao longo do tempo e da instrução e quase naufraga.
- Mano, nasci "mborra" em Luanda. Minha mãe
é que é daqui do Ambriz e o meu pai é que é de Mbanza (Kongo).
Mariana desviou a resposta que eu esperava, sendo,
porém, fornecida por um seu colega que me a transmitiria em voz meio muda:
- A resposta é
"zairiense", kota. E justificou-se: zairense é do Congo Democrático.
Nós aqui "samo" mesmo de Ambriz, ambrizetano (do Nzeto) ou
mbanza-konguense que também se chama "zairiense".
João Nevumba, como se apresentaria já na hora de
despedida, não se ficaria por aí na sua explicação e acrescentaria:
- Estou a ver que o mano está perguntar porque gosta
mesmo de saber e parece que está mesmo a ir "na" capital. Mano, as
pessoas de Mbanza não gostam muito "lhes" chamar
"zairiense". Quando o mano chegar, se precisar referir, fala só
mukongo que abrange todos do norte.
Acatei o conselho, joguei o café, meio frio, garganta
abaixo. Engatei a mudança automática de progressão e rumei à cidade cujo
símbolo apresenta cinco espadas que simbolizam igualmente número de topónimos
por que já foi designada: Mpemba, Nkumba Ungudi, Kongo dya Ngunga, S. Salvador
do Congo (depois do baptismo do Rei, tornando-se cristão) e Mbanza a Kongo.
Nkongo, contam os guias do museu, é caçador na língua
local. Terão os enviados de Diogo Cão, aportado em Matadi, perguntado como se
chamavam aquelas terras, ao que os nativos vindos da caça entenderam que se
lhes tivesse sido questionado "o que eram", tendo respondido
"nkongo" (caçadores). O reino que possuía seis províncias geridas por
"Manis" (titulo de governadores) tomou a designação de Congo, sendo
Mbanza (capital) a Congo, na pronúncia e escrita dos comerciantes de
bugingangas e anunciantes de Cristo, o
centro político para aonde os "manis" levavam os impostos recolhidos
para custear a máquina administrativa. O detentor do poder supremo é Ntotila,
em cujo Palácio repousa(va) uma frondosa árvore de três grandes ramos (são dois
na actualidade) e uma fronde de folhas permanentes, sob cuja sombra eram
efectuadas as audiências e os julgamentos. Perdeu-se na memória o nome da
árvore (tipo). Porém, o facto de ter acolhido vários "kuhu" (boas vindas
ou conversas introdutórias que para os ambundu equivale a mahezu) ela ganhou o
registo de yala kuhu.
A residência real possuía ainda um espaço muito
restrito para a lavagem e tratamento do
cadáver do rei finado (sungilu) para que fosse possível conservá-lo intacto até
ao acto fúnebre que era procrastinado até à chegada do Mani que vivesse mais
distante, chamados todos pelo som do tantã.
A casa mortuária real (mpindi a tadi) ficava a umas
centenas de metros do Palácio, distância aproximada a que nos leva ao campo
santo real, colado ao nkulu mbimbi (igreja antiga, a Sé com mais tempo a sul do
Sahara).
Mas sobre Mbanza Kongo não é tudo. Sobre o desrespeito
à mítica Yala Kuhu, contam-se estórias associadas à queda, nos anos 90 do sec.
XX , de um elicóptero que, entre outros, vitimou o bispo da diocese local e
também o despiste de um avião da companhia de bandeira, já no início do séc.
XXI, que levou à morte o administrador municipal, para além do "sangue que
a árvore jorrou, estendendo-se do espaço em que está o pavilhão desportivo até
ao cemitério real, quando os brancos construíram a estrada, cortando o terceiro
galho".
Mas o guia do museu, formado no Benin, em preservação
de espaços históricos, a luz da candidatura da cidade de Mbanza Kongo a
património da humanidade, não se fica por aqui e vai mais adiante nos detalhes
da sua apresentação. Fala também do "Mbanda Mbanda, do clã Nenzako, de
Maquela", uma espécie de Presidente do Tribunal Constitucional, a quem
cabia entronizar o rei, e informa que "Mbanda Mbanda e o rei no trono
nunca se podiam reencontrar. Se o rei fosse à terra dele, ele se ausentava. Se
Mbanda Mbanda viesse à capital, também o rei se ausentava. Ele só se via com o
Ntotila uma vez e para o entronizar", concluiu.
Entre História confrontável nos livros já abundantes e
estórias de ouvir contar e entreter o visitante/turista, muito há ainda por
ouvir e desvendar. O melhor mesmo é percorrer os cerca de 450km que separam
Luanda de Mbanza a Kongo para ver ouvir e reter. E, quiçá, recontar também?!
Obs: Publicado no Jornal Cultura, de 19 Dez/17 a 02 Jan/18, com o título "De Nkongo a Congo".
Obs: Publicado no Jornal Cultura, de 19 Dez/17 a 02 Jan/18, com o título "De Nkongo a Congo".
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