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quinta-feira, outubro 15, 2020

MBOMBA MU HONDJA*

Corria o ano de 1977. Angola era pais independente, havia dois anos. O ensino tinha sido levado a todas as aldeias do Kwanza-Sul, visando atingir a taxa de escolarização primária bruta e erradicar o analfabetismo (70%) tido como uma tara da colonização.

Na aldeia de Mbangu ya Kuteka (Mbangu-yó-Teka) Faustino Kis(s)anga Bocado era o professor.
Transitado do regime colonial em que as línguas nativas eram proibidas no ensino (excepto na catequese católica), o professor debatia-se com o problema de ter de ensinar conteúdos elaborados em Língua Portuguesa a alunos que não falavam tal idioma. Daí que a sua primeira medida tenha sido a proibição do uso do Kimbundu, por parte dos alunos, quer na escola, quer em casa (convívio familiar) o que no seu pensar permitiria a rápida aprendizagem da nova língua e a absorção consequente dos conteúdos acadêmicos.
Será que a medida pega?
Cedo, os alunos fizeram um pacto. Não falar na escola, mas tolerar quem falasse com a mãe, a avó e com os irmãos mais novos que ainda não andavam na escola. Quanto aos pais, embora também ignorassem a língua do Kaputu de que nao passavam do "tira água, apoiavam inequivocamente a ideia do professor, pois era desafio e ordem de Neto construir o "homem novo".
Porém, nascidos e feitos pessoas a kimbundar, "era impossivel viver sem o Kimbundu de nossas vidas", narrou certo dia Kakulu ka Soba.
Era sábado dum mês escondido na nuvem. Zinha Domingos e outra Zinha, cujo apelido me escapa, caminhavam para a lavra e, como farnel, levavam bombó com banana que comiam enquanto se adestravam na decoração do "a-mbe-cê-nde" e das sílabas "a-ma-me-mi-mo-mu" (cuja entoação nos leva à frase oh mãe, já sou assim).
Já com os pés no rio Kas(s)onge que separava a aldeia de Mbangu à antiga loja do Abílio, transformada em escola, uma das Zinhas, a mais nova, pede:
- Ngibaneko mbomba.
- Toma então. - Deu-lho.
- Ewo! Mbomba muhondja uwabê?! - Retorquiu Zinha Domingos.
A conversa, ora num português ainda mal articulado, ora mais se parecendo em Kimbundu, foi rolando até atingirem a zona da Vala, proximidades da fazenda da D. Lina, alemã baptizada pelos nativos por Senhora Kas(s)enda.
Chegou a segunda-feira das aulas. A pré (iniciação) ficava num terreiro, debaixo de uma árvore. A primeira repartia a sala com a terceira (de manhã) e a quarta repartia a sala única com a segunda classe, sendo pintados a negro dois retângulos nas paredes anterior e posterior que faziam o papel de quadro.
A revisão e correção do trabalho para casa englobava também a "vistoria" de quem tivesse falado Kimbundu na aldeia ou no pátio, cabendo-lhe as mesmas chicotadas ou palmatoadas que eram aplicadas àqueles que se tivessem furtado a executar o dever de casa.
- Quem falou Kimbundu? - Perguntou Faustino Bocado.
Os alunos entreolharam-se, fazendo viagem à memória. À época era ainda proibido mentir.
Nisso, Garcia que estudava a terceira e ajudava o professor a controlar os alunos da iniciação, lembrou-se de uma estória que lhe fora contada sobre uma das charás e reportou.
- Camá prossor. Zinha falou Kimbundu.
- É mentira camá prossor. Eu num faló Kimbundu. Que faló Kimbundu é Zinha Domingo. Falou assim mbomba muhondja uwabê!

*Quão deliciosa é a mistura de bombó com banana!