Número total de visualizações de páginas

sábado, dezembro 15, 2018

A CIRCUNCISÃO ENTRE OS LUBOLU E KIBALA

Tenho-me apoiado na coragem do Reverendo Gabriel Vinte e Cinco que tenho como guia espiritual neste “reencontrar origens” e procuro dedicar-me à causa que é "trazer a verdade sobre os Ambundu do Kwanza Sul".
 Tento, nesta edição, abordar de forma vivencial a circuncisão entre os Ambundu do Kwanza-sul (Lubolu, Kipala, Kisama, Hako, Hepo, Kilenda e Sende).
Ao contrário dos Bakongo que, por norma, efectuam a circuncisão à nascença, os povos do Lubolu e circunvizinhos mandam os rapazes para a "casa de água" (onzo-y-mema) na adolescência ou na segunda infância, aí entre os seis ou sete aos catorze anos de idade.
 Ao acto de circuncidar (extração do prepúcio) designam "utina". Se nas sociedades modernas tal cirurgia é efectuada por um médico ou paramédico, nas comunidades tradicionalistas é chamado um "mestre" (mesene) para o fazer. Normalmente, o "mestre" fá-lo a sangue-frio (aconteceu comigo em 1982) e ainda se assiste em determinadas localidades onde faltam enfermeiros.
Aos olhos dos garotos, o "mestre" é tido como um "individuo de olhos ensanguentados", talvez devido à enorme quantidade de sangue que fez derramar e que seus olhos já viram. É um individuo muito temido pelos rapazes incircuncisos que se apavoram à sua passagem, sendo igualmente respeitado pelos pais. A enfrentá-lo ficam apenas aqueles que não possuam outra saída senão o "desafio de vida ou morte" e que lhes dará um novo estatuto social na comunidade.
A operação acontece, normalmente, junto a um ribeiro e  isolado da aldeia, para que estranhos não visitem os circuncidados, tão pouco haja contacto entre mulheres gestantes e os cadetes. O "kaporroto de primeira" serve de esterilizante da navalha do "mestre", depois de cada operação cirúrgica.
Um ajudante ou um parente próximo dos mancebos ajuda o mestre, agarrando as mãos e prendendo igualmente as pernas do “paciente”, imobilizando-o.
Terminada a operação, o cadete senta-se numa pedra ou num tronco onde deixa escorrer o sangue da cirurgia e lhe são ministrados alguns “milongos” à base de folhas medicinais. Durante os curativos são ainda usados medicamentos como o mercúrio-cromo, tintura de iodo e a penicilina previamente adquiridos pelos pais dos petizes.
O período que demora a cicatrização é também de aprendizagem de várias artes e ofícios, como: caçar e pescar e são também transmitidas aos noviços noções sobre a sexualidade, vida familiar e social, bem como a fabricação de armadilhas e utensílios diversos.
Njine é a designação atribuída ao pénis circuncidado, ao contrário de Kifutu (incircunciso). Um homem que tenha “passado pela faca” ganha na sociedade um novo estatuto. Torna-se um homem maduro. Por isso, a própria sociedade condena determinadas acções como: tomar banho desnudado e em público, pois o individuo circuncidado é tido como um homem que deve ser respeitado e diferente dos outros rapazes, ainda que da sua idade, mas que não tenham passado pela “casa de água”.
A alimentação dos cadetes é feita de forma cuidada e selectiva. Não se alimentam de ervas e só pessoas que não mantenham relações sexuais durante o “aquartelamento” podem cuidar quer da alimentação, quer da guarda, dos circuncidados. Ovos e sal (por excesso) estão fora da dieta. Dizia-se e ainda se diz que "não se come tão bem e do melhor do que no acampamento dos circuncidados".
Só depois de curado o último dos mancebos é que o grupo regressa à aldeia, mas antes, os "novos homens" da comunidade procuram encontrar uma bananeira, em cujo caule fazem uma perfuração em que enfiam a "pontinha" do membro (diz/ia-se que era para escurecer a cicatriz). Em zonas com existência de imbondeiros o orifício é/era feito no caule desta árvore (a lenda atesta que tal acto dá grandeza ao órgão reprodutor.)
No fim de tudo, quando cumpridos todos os passos e rituais, uma zagaia (arco) e uma flecha (honji li musongo) são entregues a cada um dos cadetes que perfilam e caminham até à aldeia... Cada mancebo exercita disparando a flecha contra a porta de casa (podem ser várias casas indicadas) e são-lhe dadas algumas oferendas.
É ponto assente que ao longo dos anos muitos cadetes não resistiram a hemorragias e sucumbiram, o que tem levado as comunidades a encontrar um meio-termo entre o moderno e o tradicional. Um enfermeiro, em vez de um artesão; lâminas individuais em vez de uma faca colectiva; anestesia em vez de a sangue-frio; entre outras inovações de que sou apologista, mas sem que desvirtue a vertente social e educativa da circuncisão.
Não há, nesta região, registos orais sobre a ocorrência, mesmo em períodos muito recuados, de incisão genital feminina, tão pouco de acampamentos de iniciação de raparigas que entretanto se casam muito cedo, comparativamente às meninas dos centros urbanos. A sociedade rural Libolense e aparentada é permissiva à poligamia, condenando, porém, veementemente o adultério feminino e a poliandria que são sancionados com avultadas multas pecuniárias ao homem infractor.
O Soba, entidade administrativa da aldeia, também administra a aplicação da justiça comunitária com base no direito consuetudinário.
Os tempos modernos são de busca de combinação entre o moderno e o tradicional, encontrando-se já os sobas a trabalhar lado a lado com os secretários de aldeias, os administradores comunais e os chefes das esquadras policiais mais próximas, buscando um equilíbrio entre o direito positivo e o costumeiro.

Suporte:
VINTE E CINCO, Gabriel: Jornal de Angola, 28/12/2008
 


Sem comentários: