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terça-feira, maio 12, 2009

ANÁLISE SOCIO-TEMPORAL DO CANCIONEIRO POPULAR KUANZA-SULINO


Tal como os demais povos os ambundos do Kuanza-sul que venho retratando nesta página têm a oralidade como o privilegiado meio de comunicar e legar conhecimentos a gerações presentes e futuras. A música e um dos canais desta comunicação e transmissão de saberes (provérbios/adágios), estados socio-históricos, psico-emocionais, entre outros.

Para os que viveram ou frequentaram regiões habitadas pelos ambundus do Kuanza-sul, com certeza que se ledmbrarão das cancões em voga nos idos de 80 a 90 do século XX, quando com improvisadas violas de três cordas, bujões (feitos de pedaço de tubo PVC ou mo invólucro de um projéctil de tanque) o povo cantava os males de que sofria e o estado psico-social de então e cantava:
1-Mu kiaña ndolo sosó ia mutena bueba/buaiba.
Por gostar de usar a lenha de ndolo (especie que produz muitas faíscas) umas destas tocpou-lhes as partes íntimas. O contexto social obrigava a que as pessoas não se ausentassem para muito longe onde podessem obter boas lenhas. A solução era cortar as árvores mais abundantes, fazê-las secar e depois aproveitar os ramos secos como lenhas. Só que estas tinham consegquências nefastas: as fagulhas que na hora de afugentar o frio se espalhavam pela palhota.
2-Sambuá li sambuá o mbiji ia tena m’oie
Descrição de um estado de guerra em que os beligerantes estavam em lados opostos (Sambuá li sambuá) mantendo no meio a população, aqui personificada por uma palmeira (oie) que sofre os efeitos de um obús.
3-Puto Malio la grama xioso uali
A guerra carrega consigo alguns males como os desvios de víveres e o enriquecimento à custa dos que sofrem e ou combatem. Assim, os ambundus do Kuanza sul também evocavam nas suas canções nocturnas, à volta de uma fogueira ou dum folguedo, o roubo de gramas (ração) para os militares. O Puto Mário representa aqui os que se endinheiraram à custa dos que lutamavam e morriam.

4- Buahila Toy inhuño i biloka
Na morte como no nascimento a música e a dança estão sempre presentes. É nos óbitos de defuntos de guerra ou comuns que a população lembrava: Buahila Toy inhuño i biloka (onde morreu o Toy os abutres sobrevoam). Muitos eram mortos/fuzilados e deixados ao repasto dos abutres. Apelava-se então às mães que deixassem de chorar os seus incontáveis mortos em canções como:
5-Mama kulile Diniel io uolilaxi (mãe não chore o Daniel “que” apodrece por aí), entre outras canções.

Hoje, 2009, chegada a paz, este mesmo povo traduzido por Kahinza, a voz sonante dos Kibalas, tras ao público novos lamentos, novos apelos, novas saudades e novas realidades.

E é servindo de megafone do seu povo que Kainza nos tras cantados na sua língua provérbios como: “Éramos três irmãos e todos fomos à escola. A galinha na sua capoeira, o porco na sua pocilga mas o cabrito vegeta por aí” ou angolano io uenda io zola (angolano anda e ri).

E canta ainda Munganda u’amore uasala bu Kuanza (a carta de amor ficou no kuanza), ou Kete kusonina ki uanvitila (aquele não escreve para mim que de mal lhe contaram).
São retratos dum outro tempo. Em que a paz trouxe de volta o sorriso ao rosto do angolano. Em que os três irmãos (libertadores do país) deposeram, felizmente, as armas, dois ocupam os seus verdadeiros lugares, existindo um que ainda não se reencontrou consigo mesmo, por isso vagueando... Sanji li Kialu kié; ngulo li linda lié; hombo io uendelaxi. Tempos de saudades daqueles que tinham “sobrado da guerra” mas que tinham encontrado outras vidas e se esqueceram da família à qual nem sequer cartas enviavam. Tempo também de novas paixões, de novas ilusões. De novas declarações de amor, por via da carta que cai na dura revista feita no controlo do Kuanza (Kiamafulo).

E retrata também a reabertura das estradas e as viagens para Luanda onde as jovens rurais, por inadaptação, se engravidaram no primeiro engate. E Kainza transmite o sentimento dos ambundus do Kuanza-Sul nos seguintes termos: Mona uai muangope, ku uana omala ké uai (a filha foi a Luanda; foi à busca da sua gravidez), sem se esquecer dos negócios por Angola adentro.


O povo retrata ainda a vida da mama’a ngongo (mãe dos gêmeos) e do Tio Ngunga. Este último é descrito como sendo originário do Uige e por gostar de fazer negócios foi sepultado numa via/estrada do Kuanza sul. Tio Ngunga Ku Uige uatundu muapila nengócio mbila ie mu via/mu kuanza-sul.

Se recuarmos 30 anos e consultarmos o cancioneiro popular da decada de Setenta do seculo XX ouviremos nas ngomas e kisacas (batuques e xocalhos) letras como: Ohié, ohié mua Cê-Pê-A; okalunga kali monami xio ua kenjia (CPA= Corpo de Polícia de Angola criado pelo governo de transição ao abrigo dos acordos de Alvor). E apelava o povo à polícia que a causa da morte do seu filho era desconhecida.


Assim se escreve a Históriia de um povo que canta e sempre cantou!




Luciano Canhanga

segunda-feira, maio 04, 2009

OS AMBUNDU DO K-SUL: DELITOS, TRANSGRESSÕES E PENALIZAÇÕES NAS ALDEIAS RURAIS


"A autoridade tradicional é imposta por procedimentos considerados legítimos porque sempre teria existido, e é aceite em nome de uma tradição reconhecida como válida. O exercício da autoridade nos Estados desse tipo é definido por um sistema de status, cujos poderes são determinados, em primeiro lugar, por prescrições concretas da ordem tradicional e, em segundo lugar, pela autoridade de outras pessoas que estão acima de um status particular no sistema hierárquico estabelecido (Max Webber)" 1.

Para além dos meus primeiros dez anos de vida vivida em aldeias rurais do Lubolo (Libolo) e Kibala, tenho me servido de idas constantes à região que descrevo para “in situ” reviver a maneira de ser e de estar destes povos.

As comunidades rurais do Libolo, Kibala e doutros povos ambundu que habitam o território da província angolana do Kuanza-Sul, apesar de não possuírem uma pauta que tipifique o que são delitos e o que são transgressões nem tão pouco as penalizações para cada desvio de conduta social, têm um sistema jurídico baseado em mores e hábitos aceites universalmente pela comunidade e que têm o peso de lei.

Ùkambula é o termo que traduzido para português equivale a cometer delito ou desvio social. A autoridade administrativa e sua corte, no caso o rei/soba é também o garante da legalidade na sua jurisdição sendo auxiliado na administração da justiça pelo Ñgana Thandela (ministro da justiça)2 que é perante a corte o responsável pela aplicação da lei.

O delito maior é o assassinato ou seja a morte de alguém de forma voluntária, o que pressupõe dizer que o direito à vida é o principal que a sociedade atribui ao homem.
Roubos, furtos, violações, falsos testemunhos, agressões físicas e verbais, incêndios contra propriedades privadas e ou colectivas (como as coutadas) são frequentes, sendo igualmente os desvios às normas sociais mais conhecidos e punidos de acordo ao direito consuetudinário.

Fruto da sua crença no poder dos defuntos e antepassados e sua irreligiosidade (são grande parte animistas) os povos em referência têm uma grande crença no feitiço. Daí que acusações de feiticismo preenchem o dia-a-dia do soberano e das comunidades.

Entre as penalizações constam a simples censura, restituição de bens de terceiros (roubados ou danificados), indemnizações (pecuniárias e em espécie), castigos físicos, entre outros.

A autoridade do rei/soba é reforçada apelo animismo e pela ideia de feitiço. O rei é tido como o detentor do mais forte feitiço, daí que para além de respeitado é igualmente temido, sendo as suas convocatórias, normalmente de comparência obrigatória. Os povos destas comunidades apesar de professarem algumas crenças religiosas (católica e protestantes) têm uma ligação muito forte a seus ancestrais e retornos a práticas animistas.

No esforço de conciliação entre o moderno e o tradicional, muitas vezes os reis/sobas encaminham determinados “casos” às autoridades políticas e judiciais, sobretudo casos de homicídios voluntários, evitando-se assim que seja executada a justiça por mãos próprias, as autoridades policiais locais (as mais próximas) têm sido igualmente várias vezes chamadas para dirimir querelas que os soberanos julgam poder fugir fora do seu controlo. Outras vezes são os próprios cidadãos que recorrem ao direito positivo, sempre que julguem ineficazes os julgamentos comunitários.

1-http://pt.wikipedia.org/wiki/Max_Weber, consulta 05.02.09
2- VINTE E CINCO, Gabriel: Os Kibalas, Núcleo-Publicações Cristãs, Lda. Queluz, 1992
Na foto: A aldeia de Pedra Escrita (Munenga-Libolo)

Luciano Canhanga